17.12.04

Cena primária

19/08/1997

Por muito tempo, durante alguma época da minha infância, eu despertava do meu sono de madrugada e só conseguia voltar a dormir quando o dia começava a amanhecer. Quando chegava a hora de dormir, já ficava imaginando o sofrimento quando eu acordasse no meio da noite.Quando isso acontecia (era sempre por volta das 2:30), ficava ouvindo o silêncio da madrugada, com medo. Tinha medo de ouvir gemidos. Quando dava vontade de ir ao banheiro ou beber água, não ia de jeito nenhum, com receio de ouvir (ou até ver) algo tão indesejável. Ficava imaginando a agressão, a feiúra da cena, e apertava os olhos, rezando, e até chorando, para dormir logo. Mas era inútil, pois só conseguia voltar a ter sono quando os primeiros raios de sol apareciam. E aí sentia uma alegria imensa e adormecia. Às vezes, impaciente, me levantava e ia até a janela do meu quarto e ficava olhando as prostitutas. Eu adorava vê-las do sétimo andar...é quando eu ficava mais aliviada e distraída. Só Deus sabe o quanto eu sofri naquela época. Vejo como foi precoce e frustante: uma criança ouvindo o silêncio da madrugada, com medo de ouvir os pais transando, pensando coisas por cerca de 3 horas, em total solidão. Hoje, meus pais se separaram e eu sou muito mais feliz. Acho que a idade também ajudou. Além disso, deixei de tomar coca-cola antes de dormir. O único problema é que de onde eu moro, não posso ver as prostitutas.

11.12.04

problema de semântica visto sob a perspectiva de um ser sadio, que vê, anda, fala e escuta.

Não vejo a beleza do óbvio
Não vejo sentido numa evasão de simplicidade
Eu quero é o inesperado
Eu quero é a simplicidade

10.12.04

Concreto e barato

Todo

mundo

muda

muito

6.12.04

Chá das 7

Pôs o jornal dentro de uma panela,
adicionou água e levou ao fogo.
Esperou ferver um pouco e, cuidadosamente,
retirou o papel desgastado.
Teve cautela ao colocar o chá
num copo de plástico.
Bebeu e esperou.
A tinta e as tragédias pesaram
no seu estômago.
Sentiu tanta dor que vomitou
poesia.

15.11.04

Muros

Os muros da cidade já não são mais brandos,
São altos e misteriosos
E intolerantes até o topo.

Os muros da cidade já não são mais brancos,
São cheios de esperanças e decepções,
Números e sorrisos
E pichações ridículas, que nessa época, parecem obras de arte.

Os muros da cidade já não são mais tantos,
São apenas barras, uma em cada canto
Revelando o encanto, proliferando ilusão.

Os muros da cidade já não estão mais prontos
Para confortar os pés de quem se arrisca.
E pensar que o perigo era apenas diversão...

2.11.04

D.I.T.

O escritório é logo ali, na casa de tijolos sem reboco...
*No birô central: Jefferson, 36 anos, encarregado das finanças e do balanço diário do caixa. É quem ditribui os lucros.
*Na mesinha lateral: Paulo, 33 anos, responsável pelas aulas de expressão corporal e retórica.
*No departamento culinário: Nice, 25 anos, cozinheira, degustadora e responsável também pelas embalagens.
*No setor de divulgação: Márcio, 17 anos, é quem escreve os bilhetes, panfletos, etc. Responsável secundário por convencer (comover?) o cliente.
*No Siqueira-Papicu-13 de maio mais próximo: Francisco, 8 anos, e Felipe, 12 anos. O primeiro distribui os quadradinhos de papelão confecionados por Márcio (da divulgação), enquanto o segundo, usa de sua retórica e expressão corporal (enriquecidas pelas aulas de Paulo, da mesinha lateral) para tentar vender os saquinhos de bala de gengibre, feitos por Nice.

No final da jornada de trabalho, os meninos caminham até o escritório, na favela do côco, exaustos, e despejam todo o faturamento no birô central. Tiveram muita sorte naquele dia: Francisco conseguira um bom número de esmolas e Felipe vendera boa parte dos saquinhos de bala. No entanto, voltaram para casa com as mãos abanando, pois segundo Jefferson, eram crianças demais para andar com dinheiro nos bolsos, principalmente àquela hora da noite! Pagaria-lhes no final do mês, dependendo do ritmo das finanças.

4.10.04

--- Ao 12 de outubro ---

Gosto do nosso amor assim
Piegas, bobo, infantil
Cosquinhas na barriga
Horas e horas ganhas em gargalhadas escandalosas
Chiclete grudando no cabelo, maçã do amor pregada no céu da boca
E beijos na boca, sob um aroma nauseante (?) de tuti-fruti
Sexo sim, mas tão ingênuo e belo...
Gostaria de me teletransportar, pra poder te ver mais
E de ter uma varinha mágica, pra poder te dar o que desejares
Amar sem interesses, como se ama um cão
Como se ama e se brinca com um cão
Amar feito uma boba, alegremente
Correr e me despudorar feito uma criança
Num ensolarado (o sol sorrindo) dia de 12 de outubro

29.8.04

Cabeça oca

Penso,
labuto,
paro,
procuro,
não encontro e
fico puto!
Ando até o armário
e pego um dicionário.
Pra escrever qualquer poema
faltou-me vocabulário.

15.8.04

- Valeu, machão! -

Já falei e tá falado
Já fui muito humilhado
Pra querer você de volta

Eu olhei em minha volta
Ouvi piadas e risadas
E frases inacabadas
Intimidadas pelo meu punho

Não, querida, não tente
Não se lamente
Arranje alguém que te agüente
E ache lindo o que tu faz

Tô vendo que você não muda
Continua feito uma puta
Usando essa saia curta
É muita cara de pau...

(...)

E Lúcia foi embora, mais revoltada do que nunca, aos prantos, decidida a dar pro primeiro que ela encontrasse e fazer jus a tudo o que acabara de ouvir. E não deixaria de usar sua saia curta!

31.7.04

A Madrugada



A madrugada... silenciosa

Luzes que se apagam

Vozes que se calam

Um imenso silêncio

Interrompido pela solidão



Ruas desertas

Pensamentos vagos

Esperanças... adormecidas

Sonhos... congelados

Amores... esquecidos



As horas passam devagar

Enquanto a cidade dorme

E eu continuo aqui

Esperando que o destino

Faça algo em meu favor



A chuva começa a cair

E o vento a soprar forte

Levando todas as angústias

Para a próxima madrugada

Porque, agora, o sol acabou de nascer...

(Priscila Cordeiro)

18.7.04

O cinema eu eu
A tela, o casal apaixonado e eu
Uma trilha sonora chorosa e eu
Sons de violino, uma faca em meu peito
A dor e eu
Tu não tinhas o direito de dar a ela o sorriso que era meu
(...)
Agora, o cinema e eu
Saio um pouco pior, desconsolada
O casal apaixonado, tão patético, me olha com pena...
E vou andando, chutando pedrinhas, até a hora de voltar para a próxima sessão.

27.6.04

- Não se sente mal?
- E por que sentiria?
- Acaba de me vender seu corpo...
- Não vendi, apenas aluguei. Continuo com ele.
- Não se envergonha disso?
- Não, pra falar a verdade acho até inteligente.
- E por quê?
- Por que fazer de graça se posso cobrar?
- Não acredita no amor?
- Só entre pais e flhos...
- Por quê? Alguma frustração?
- Quantas vezes você disse " eu te amo" a uma mulher?
- Várias
- Poisé, e hoje você tá aqui, comigo! Não acredito nesse amor descartável, volátil...
- Hum, temos aqui uma puta quase erudita!
- Digamos que essa seja minha pretensão!
risos
(...)

Casaram-se, fizeram bodas de ouro. Ele morreu aos 76 anos com câncer de próstata. Ela morreu 1 mês depois. Não conseguiu viver sem seu grande amor.

17.6.04

A verdadeira conversa de botas batidas

- Porra...agora ferrou mesmo pra gente!
- É, vamo apodrecer por aqui!
- Mas é foda...o velho bateu a gente porque ele já não agüentava mais, né!
- Verdade, mas ele foi egoísta! Deixar a gente aqui, obrigar a gente a passar pelo que ele passou a vida inteira...aqui nessa casa enorme!
- Cara, ele passou por isso a vida inteira! Nós, pelo menos, temos um ao outro. E mais: cedo ou tarde vai aparecer alguém aqui na mansão pra pegar a gente. Sem dúvidas!
- É, tomara. PÔ, pensando bem, coitado dele. Sozinho, nenhum amigo, tio, irmão...será que ele era mau?
- Não, acho que não. Quem é mau, mau mesmo, num chora tanto.
- Ei, ei...tão abrindo a porta ali. Shhh! Tá pegando as coisas do velho! Olha lá, ta arrastando tuuudo. Deve ser algum parente...
- Cala a boca e fica queto! Vamo torcer pra acharem a gente aqui..
- Uhum...

14.6.04

Mesma tarde diferente

Tá chovendo. O tempo parece passar mais devagar quando chove. A chuva acalma a correria da cidade, silencia os motores. Ir para a rua, tomar banho de bica, sentir a água gelada descendo pelo corpo, chutar as poças d’água, jogar bola na chuva. Deitar-se num sofá quentinho enquanto sente os pés e a ponta do nariz frios, pôr meias, cobrir-se com um lençol, assistir a um filme qualquer. Pequenos prazeres oferecidos pela natureza que têm a vida como testemunha e conseqüência.

Tá chovendo. O tempo parece não passar quando chove. A chuva afoba as pessoas, silencia vidas. Ir para a rua, pedir ajuda, sentir a água gelada cerrando os lábios, salvar o que resta, levar pra longe. Encontrar um lugar quente, um cobertor, um sorriso, uma esperança, um jornal qualquer com mais números. Desgraças arbitrárias da natureza que têm a morte como testemunha e conseqüência.

13.6.04

Vejo os shoppings muito lotados, as pessoas correndo, mas não consigo enxergar olhos, nem boca, nem nariz, em seus rostos. Estranho. Entro numa loja, passo a mão por uma camisa de crepe, confiro o preço na etiqueta, ponho-a dentro da bolsa e saio.
Vou até o ponto de ônibus, prendo a bolsa junto ao meu peito, de vez em quando tropeço na minha saia longa. Não há ninguém por perto. Os ônibus passam, mas não param. Insisto. E mais uma vez, vejo um sorriso esquisito (ri de mim?) no motorista, que passou ainda mais veloz que os outros...
Saio caminhando. Caminho por horas. Vou tocando nos muros de pedra, nos portões de ferro, nos cacos de vidro lá no alto. Ouço gritos, choros de crianças, buzinas de carro. Vejo a fumaça cinza, a moça encostada no muro passando batom, as pessoas andando, esbarrando-se umas nas outras.
E vejo o mar. Tão verde, tão uniforme! Já estou despida. A bolsa, a camisa de crepe, os muros, o cacos de vidro, os gritos atordoados, deixei pra trás. A água morna me toma, e nela é tudo tão silencioso que quero ir mais fundo. Já não sinto mais nada, além de um enorme prazer, um imenso alívio.

23.5.04

Corrente

Você tem certeza
Mas não tem confiança
Remar contra a maré
Às vezes cansa.

Seu amor não vale nada
Não importa sua tristeza
Você tem confiança
Mas não tem certeza

E quando seu mundo é só seu
Você se torna o guia
Tem certeza e confiança
Mas não tem mais vida.

17.5.04

Mania qualquer

A vida não é prática.
Nascer.
Crescer.
Correr.
Morrer.
Subtrair a humanidade
em favor do tempo.

Algo mudar. Alguém mudar.
Nada muda. Todos mudos.

Ouvir...
Sorrir...
Sentir...
O que sustenta essa
mania de liberdade.

8.5.04

Ebriativa desilusão

Dores, palpitações, anseios...
A lembrança do nosso encontro
é o teu gosto na minha boca.
Procurei, em ti, uma segurança
e uma certeza de euforia, mas
perdi a noção, o tempo
e o chão.
Tu foste capaz
de me virar ao avesso.
Não enxerguei tuas malícias
que, há tempos, me conduziam
à solidão.

4.5.04

Relações fabulosas

Deixa essa esfinge
e se revela.
Não se deve ter medo!
Já não somos sensíveis
às entrelinhas...
Eu só conheço
o meu Eu,
por isso me faltam peças
no quebra-cabeça da vida...
Esta é curta demais pra
se perder em mentiras formais.

2.5.04

Esperança

Ela só morreu por último
porque me matou primeiro.
Deixou-me à espera
do inconcebível
e não me disse que, pro destino,
não existe acaso.
Rompeu as possibilidades do desejo
e deixou uma
vida expressa
em contos e desencontros.

8.4.04

Quase Lá

Da janela do meu quarto vi um menino pedindo esmola.
Parei para pensar.
Senti pena e logo revolta.
Por que o mundo é tão injusto?
Dá vontade de mudar tudo,
Tomar alguma atitude...
Opa! Começou a novela.

3.4.04

Primeira vez

Passa, tempo!
Leva minha mente
Antes que a vida a arrebente.

28.3.04

Coxinha

Um real! Apenas um real! Esse é pra mim o limite da simplicidade. Não há nada melhor do que comer em uma lanchonete simples e pagar apenas um real por uma coxinha enorme ou um pastel oleoso. Às vezes até vem com um copinho de refrigerante de brinde. E isso tudo por apenas um real.
Por favor não confunda isso com avareza mas é que hoje está ficando cada vez mais difícil encontrar um lugarzinho onde se possa comer bem com pouco dinheiro. O mais irritante é quando fazem aquelas promoções para disfarçar o aumento: "R$1,50 Coxinha + Refrigerante". O refrigerante é sempre um daqueles de nome esquisito e é servido num copinho de café. E a coxinha era muito maior antes da promoção.
Lembro de uma época em que perto do colégio onde eu estudava abriu uma pastelaria. Era qualquer sabor por um real. Até aí tudo bem:
- Moço, eu pedi frango com catupiry!
- Tem alguma coisa errada?
- Eu não estou vendo o catupiry!
- Tem sim. Pode ver... lá no fundo.
- Ah... aquela tirinha?
- É sim.
- Será que dá pra echer com um pouquinho mais de catupiry?
- Se quiser com mais cutupiry são dois reais.
Nunca mais fui lá!
Perto dessa pastelaria abriu também uma lanchonete que vendia uma coxinha deliciosa mais um copinho de refrigerante pelo famoso um real. Não me lebro do nome do lugar mas por um motivo óbvio só o chamava de coxinha. O preço, a simplicidade e a simpatia dos donos da lanchonete logo me cativaram. Passei a comer lá todos os dias depois da aula. Por muitas vezes voltei a pé por ter gastado o dinheiro do ônibus. Quando não tinha pedia aos amigos e ficava devendo cada vez mais, apenas pra comer coxinha. Me sentia um viciado.
Acho que o segredo deles era a maionese. Servida naqueles tubinhos amarelos de tampinha branca, ela tinha um gosto muito especial. A cada mordida que eu dava na coxinha eu gastava meio tubo de maionese. Ela era tão boa que se você visse alguém usando catchup, podia ter certeza que era um novato ali.
Como tudo que é bom (e simples) dura pouco, aumentaram o preço da promoção para R$1,50, aumentado o refrigerante de copinho para uma garrafa de vidro e mantendo o tamanho da coxinho. Devo confessar que foi um aumento leal, mas de qualquer forma foi um aumento e logo tudo foi perdendo a graça.
Minha freqüência por lá diminuiu, assim como a de outros clientes. Comecei a dar preferência aos ônibus e fui ficando menos dependente da maionese. Quando menos percebi já não ia mais lá e tinha quitado todas minhas dívidas com meus amigos.
Hoje estou na faculdade e não ando mais por aquelas redondezas. Apesar de descobrir que é possível fazer uma refeição completa por oitenta centavos ainda sinto muita falta da coxinha. Outro dia passei lá e descobri que uma grande multinacional comprou o terreno e hoje as pessoas comem sanduíches produzidos em série que não saem por menos de R$ 5,00. São os efeitos da globalização.